19 novembro, 2010

Carta de José a José

Eu te digo, José: por esta carta

Não garanto mentira nem verdade:
O que de mim não sei sempre me aparta
Da franqueza de ser e da vontade.

São cobiças inúteis, vãos desgostos,
São braços levantados e caídos,
São rugas que cortam os cem rostos
Da comédia e do jogo repetidos.

Desse lado da mesa, ou desse espelho,
Vais seguindo as palavras invertidas:
Assim verás melhor se, quanto, valho
Ao revés dos sinais e das medidas.

(Correm águas geladas no meu rio.
E roucos cantos de aves, derivando
Por silêncio frustrado e calafrio,
Vão manhã doutro dia recordando.)

Cai a chuva do céu, e não te molha,
Está a noite entre nós, e não te cega.
Não sorrias, José: à tua escolha
O que nos sobra de alma se me nega.

Desse lado da mesa, onde me acusas.
Te levantas. A marca do teu pé,
Na soleira da porta que recusas,
Fecha de vez a carta inacabada.

Tua sombra pisada, teu amigo — José.

(José Saramago)

16 novembro, 2010

Questão de Palavras

Ponho palavras mortas no papel,
Tal os selos lambidos doutras línguas
Ou insectos varados de surpresa
Pelo rigor impessoal dos alfinetes.


De palavras assim arrematadas
Encho palcos de pasmo e de bocejo:
Entre as portas me mostro, agaloado,
A passar flores secas por bilhetes.


Quem pudera saber de que maneira
As palavras são rosas na roseira.

(José Saramago)

06 novembro, 2010

Alquimista

Não é aquele do Paulo Coelho não, pombas! O alquimista da história sou eu mesmo. E não é aquele alquimista que busca descobrir o elixir da imortalidade ou então que se utiliza da tal pedra filosofal.

Minha alquimia é culinária, em sentido lato. 
Não sei precisar o motivo que me levou a gostar de cozinhar e tudo o que envolve esse ato, mas me arrisco a dizer que foi a educação que tive e as mulheres ao meu redor. Criado numa casa com 3 mulheres e passando grande parte dos domingos e dias santos junto delas e de uma dúzia de tias e primas não tinha como não ficar às voltas com o mundo culinário (e com o mundo feminino, o que me leva a entendê-las, mas isso fica pra uma próxima ocasião).

Cheirar, balançar, provar, escolher, comprar, cortar, temperar, bater, mexer, enfeitar e servir. Cozinhar é isso tudo. A união desses atos fascinantes é pura alquimia! 

Ou não?

Dessa alquimia se faz o amor, as risadas e outras tantas boas coisas. Sentimentos e alimentos misturando-se uns aos outros.

É preciso muita sensibilidade e paciência.

E tenho sorte de estar acompanhado por quem admire e entenda essa minha alquimia, sem que me torne subverniente. Assim como eu sei que ela também gosta de se meter a alquimista às vezes (o que faz com muitíssima propriedade!).

E, confesso, não vejo a hora de "inaugurar" a cozinha do apartamento. Que, de antemão, já reclamei como sendo território meu.

Aí sim, a felicidade vai ser geral!